O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional / The Little Cripple and Everyday Architecture
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O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional
por Lucio Costa / Introdução por Catherine Seavitt Nordenson
Introdução
O arquiteto Lucio Costa (1902–1998) é reconhecido como o autor do plano diretor de Brasília, a modernista capital federal do Brasil, idealizada pelo Presidente Juscelino Kubitschek (1902–1976) em 1956. Inaugurada apenas quatro anos depois no planalto central do Brasil, Brasília cumpriou o utópico sonho do século XIX de mover a capital da nação da cidade costeira do Rio de Janeiro para o interior do país. Dactilografada por seu secretário, a proposta de Costa para o Plano Piloto de Brasília em 1956 é um texto influente do período modernista. Menos reconhecido porém, é o seu largo corpo de escritas críticas sobre patrimônio nacional, preservação histórica, e pedagogia arquitetônica. Muito dessa escritura foi elaborada durante os seus trinta e três anos de serviço como membro do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a agência federal de preservação e patrimônio histórico. De 1939 a 1972, ele foi um funcionário público deste departamento vinculado ao Ministério de Educação e Cultura.
O texto aqui apresentado, tanto no português original quanto na minha tradução para inglês, “O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional” / “The Little Cripple and Everyday Architecture,” se trata de um dos textos mais antigos publicados por Costa, escrito quando ele possuía apenas vinte e sete anos de idade, e pré-datando o seu período no SPHAN por dez anos.[1] Aparecendo em O Jornal do Rio de Janeiro em 24 de junho de 1929, o ensaio foi incluído em uma edição especial examinando arte e cultura do estado de Minas Gerais (Figuras 1 e 2). O editor do jornal na época era Rodrigo Mello Franco de Andrade (1896–1969), um mineiro orgulhoso de suas origens, que iria fundar o SPHAN em 1937, designando Costa como seu diretor de pesquisa em 1939. O vasto trabalho atribuído ao “aleijadinho,” a apelido do escultor barroco do século XVII Antônio Francisco Lisboa (1738–1814) que perdeu o uso de ambas as mãos devido à doença lepra, foi rapidamente tombado e protegido pelo SPHAN. Ainda neste primeiro texto, Costa reflete no mito criado em volta de Aleijadinho e questiona se o seu legado escultural era de fato um reflexo do verdadeiro caráter e espírito da arquitetura cotidiana brasileira entre os séculos XVII e XVIII.
Quem foi Aleijadinho? Uma anomalia singular? Uma ficção criada por seu primeiro biógrafo em 1858, Rodrigo José Ferreira Breitas (1814–1866)?[2] Um ídolo dos primeiros modernistas brasileiros que buscavam a força criativa nativa do Brasil?
Talvez a melhor pergunta seja quem foi, de fato, Lucio Costa? Em 1930, somente um ano após a publicação deste ensaio, Costa iria cortar relações com seu admirado mentor, o arquiteto José Marianno Filho (1881–1946) e começaria a disrupção sobre o eclético estilo arquitetônico neocolonial que ele havia previamente integrado. Rejeitando esta tradição, Costa iria transformar radicalmente a conservativa Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro durante sua breve diretoria no período de 1930–1931. Ele moveu a educação de arquitetura da escola na direção do novo estilo modernista emergente em São Paulo desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Porém, nas décadas subsequentes, e mesmo durante a construção de Brasília, Costa iria retornar muitas vezes a refletir sobre o legado da aquitetura colonial do Brasil. Ele catalogou a arquitetura do período barroco no Brasil, tombou edifícios históricos da época colonial e construções das missões jesuítas através do SPHAN, e continuou a pesquisar e escrever extensivamente sobre Aleijadinho, reconhecendo o seu talento e importância. Ele chegaria até mesmo a comparar admiradamente seu antigo aluno e protegido Oscar Niemeyer (1907–2012) a Aleijadinho. Olhando para o passado, Costa via o futuro.
O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional
por Lucio Costa
O caso do Aleijadinho já tem sido muito estudado, comentado, lendificado.[3] Muita coisa já se tem dito e exagerado a respeito. E a gente tem mesmo logo vontade de fazer uma história bonita, quando se lembra de um pobre leproso que pôde transformer a sua desgraça em tanta maravilha de escultura, e que a desgraça passou, e que as pedras ficaram (Figuras 3 e 4).
Mas isto não adianta. Não adianta também querer saber como ele conseguiu chegar à perfeição de técnica a que chegou, a orientação que seguiu, baseado em que, simples questão de história, arquivos e papéis velhos, nem estar a garantir que aquilo foi, e que aquilo não foi feito por êle, porque em Minas tôda pedra trabalhada é obra do Aleijadinho. O que faz lembrar a célebre viagem de Chateaubriand aos Estados Unidos, em que, dado o tempo empregado e as cidades que declarou ter percorrido, nem mesmo de trem a cento e vinte por hora.[4] A aritmética é de uma simplicidade implacável, uma simples conta de dividir às vezes destrói convicções profundas.
Emfim, o amigo da pureza incerta da sonsa Récamier, era todo cheio de exageros, desculpa-se.[5] E o nosso pobre Aleijadinho também não teve culpa, porque na verdade ele foi um grande empreiteiro, tinha muitos auxiliares que faziam o grosso da obras, cuidando ele apenas da parte mais interessante, de maior responsabilidade. Isso em parte explica a quantidade de portais, púlpitos, etc., que lhe são atribuídos, e tem a vantagem importantíssima de alimentar a ilusão de todos as vilas mineiras que se orgulham de possuir uma pedra trabalhada pelo divino leproso.
O que me parece valer mais a pena, e que ainda não foi feito, é olhar os seus trabalhos sob o ponto de vista puramente de arquitetura.
Tratando de ver o quando influiram naquela época, e o quanto poderão influir ainda hoje em dia sobre aqueles que estudam a nossa antiga arquitetura, procurando vencer esse silêncio, esse sono de quase dois séculos, onde se perderam os bons princípios em que, inconscientemente, ela se orientava. E é sob esse ponto de vista que a figura do Aleijadinho diminui de vulto, retoma as suas verdadeiras proporções, desce do trono em vem falar com a gente cá em baixo, naturalmente.
E é assim que a gente compreende que ele tinha espírito de decorador, não de arquiteto.[6] O arquiteto vê o conjunto, subordina o detalhe ao todo, e ele só via o detalhe, perdia-se no detalhe, que às vêzes o obrigava a soluções imprevistas, forçadas, desagradáveis. Os seus maravilhosos portais podem ser transportados de uma igreja para outra sem que isso lhes prejudique, pela simples razão de que êles nada têm a ver como o resto da igreja a que dão entrada. São coisa à parte. Estão ali como que alheios ao resto. Ele pouco se preocupava com o fundo, o volume das tôrres, a massa dos frontões. Ia fazendo (Figuras 5, 6, e 7).
Tem-se a impressão de que esculpia em delírio, desabafando toda a sua dor imensa e os seus ódios mesquinhos no seu trabalho, identificando sem querer em sua obra todo o seu íntimo torturado e recalcado, lascando e modelando a pedra com volúpia doentia, estilizando em volutas, filêtes e florões, todas aquelas formas com que ele sonhava sem poder tocar. E embora Freud já esteja meio cacête com a sua psicanálise, a gente não pode deixar de pensar nele quando pensa nesse recalcado trágico que foi o Aleijadinho. Os poucos arquitetos que têm estudado de verdade a nossa arquitetura do tempo colonial, sabem o quanto é difícil, por forçado, a adaptação dos motivos por êle criados. E isso porque o Aleijadinho nunca estêve de acordo com o verdadeiro espírito geral da nossa arquitetura. A nossa arquitetura é robusta, forte, maciça, e tudo que ele fêz foi magro, delicado, fino, quase medalha. A nossa arquitetura é de linhas calmas, tranqüilas, e tudo que ele deixou é torturado e nervoso. Tudo nela é estável, severo, simples, nada pernóstico. Nêle tudo instável, rico, complicado, e um poco precioso. Assim toda a sua obra como que desafina de um certo modo com o resto da nossa arquitetura. É uma nota aguda numa melodia grave. Daí a dificuldade de adaptá-la, amoldá-la, ao resto. Ela foge, escapa, é ela mesma. Ele mesmo.
E é por isso que não o considero assim tão indispensável, e acho graça quando ouço dizer que sem ele os nossos arquitetos nada teriam que aproveitar na arquitetura colonial. O essencial é a outra parte, essa outra parte alheia à sua obra, e a gente sente o verdadeiro espírito da nossa gente. O espírito que formou essa espécie de nacionalidade que é a nossa. Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo as suas velhas cidades, Sabará, Ouro Preto, S. João del Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a impressão triste que tive, a pena infinita que senti vendo completamente esquecidos aquêles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão marcado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surprêsa em surprêsa, a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós, não sei (Figura 8). Proust devia explicar isso direito.[7]
E quando já se conhece Bahia, Pernambuco e os outros, e que se observa que afora pequenos detalhes próprios a cada região, o espírito, a linha geral, a maneira de fazer é sempre a mesma, seja no Caraça ou seja em Olinda, é aí que a gente vê, mesmo sem saber nada de história, só olhando a sua arquitetura antiga, que o Brasil, apesar da extensão, diferenças locais e outras complicações, tinha que ser mesmo uma coisa só. Mal ou bem foi modelado de uma só vez, pelo mesmo espírito, e uma só mão. Torto, errado, feio, como quiserem, mas uma mesma estrutura, uma peça só. A sua velha arquitetura está dizendo (Figura 9).
Entretanto há mais de um século, quase dois, que isso tudo acabou, parou. Vinha andando, tão bem; de repente parou, desandou, e a gente fica sem compreender nada. Mas afinal que fim levaram aqueles indivíduos que trabalhavam tão bem o jacarandá, e faziam aquelas camas, aquelas arcas, e cinzelavam aquelas solas? E aquelas mestres anônimos que proporcionavam tão bem as janelas e portas e davam aos telhados, às beiradas, aquela linha tão simpática? E o resto, e tudo mais, onde estão eles, que fim levou tudo isso? Tudo desapareceu de repente, sumiu. Custa acreditar que seja a mesma gente, o mesmo povo.
É em ponto pequeno, pequeníssimo, o mesmo que aconteceu com a Grécia antiga. Ninguém consegue compreender que as criaturas que moram lá hoje em dia, sejam descendentes das mesmas criaturas que fizeram o Parthenon, o Discóbolo, a Ilíada. É irremediàvelmente incompreensível!
Enfim eles ainda tiveram uma espécie de americanista precoce, um Alexandre que andou espalhando o helenismo pelo mundo antigo afora. E a semente pego.
Quanto a nós, pobres de nós, desaparaceu por completo. Foi embora, acabou. Mas isso tudo é bobagem. A verdade é que a gente tem de morar mesmo em Copacabana. Sentar numa cadeirinha de vime e ouvir as vitrolas e os rádios da vizinhança. Depois a gente vai ao cinema.
Mas o pior é que quando a gente morre tem que ir para um cemitério horrível como o São João Batista e ficar ali enfileirado, imprensado entre aqueles pavores de mármore branco, igualzinho aos bangalôs de Copacabana, eternamente (Figure 10). Enfim, o São Jõao Batista não tem vitrola, e depois, parece que a gente se habitua.
Notas
[1] Sou muito grata à Casa de Lucio Costa, Maria Elena Costa, e Julieta Sobral, por esta generosa permissão para reimprimir e traduzir para o inglês este artigo original por Lucio Costa para este volume do PLATFORM. Gostaria também de agradrecer a Levi Medeiros Pinheiro, por sua ajuda com a tradução da minha introdução para português.
[2] Ver Guiomar de Grammont, Aleijadinho e o Aeroplano: O Paraíso barroco e a construção do Brasil Colonial (Civilização Brasileira, 2008) para consultar sua narrativa academicamente pesquisada explorando o paralelismo entre a construção do nacionalismo e a história da arte e cultura no Brasil. Eu sou muito agradecida ao Bruno Carvalho por ter chamado a minha atenção para este trabalho.
[3] Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto em 1738, filho do arquiteto Manoel Francisco Lisboa e uma de suas escravas, Isabel. Diz-se que ele sofreu de uma doença debilitante, possivelmente hanseníase ou esclerodermia, perdendo o uso de seus dedos e ganhando asism o apelido “Aleijadinho.” Ele insistia que seus assistentes atassem seus instrumentos de esculpir em seus antebraços para que ele pudesse continuar a trabalhar. O conjunto de doze profetas é considerado como uma obra-prima de Aleijadinho, esculpida em pedra-sabão e posicionada ao longo dos degraus do adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos no município de Congonhas do Campo. Ele morreu em 1814. Ver Rodrigo José Ferreira Bretas, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Publicação do Diretoria Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, no. 15 (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951). A biografia original de Bretas apareceu em duas edições do Correio Official de Minas, em 19 de agosto de 1858 and 23 de agosto de 1858, com o título extendido “Traços biographicos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distincto escultor mineiro, mais conhecido pelo appellido de Aleijadinho.”
[4] François-René de Chateaubriand (1768–1848), um jovem aristocrata francês, viajou para os Estados Unidos durante o seu exílio após a Revolução Francesa de 1789; ele escreveu os romances Atala (1801), René (1802), e Les Natches (1793–1799), também como Mémoires d’outre tombe (1848–1850) e Voyage en Amérique (1826). O seu itinerário preciso permanece de certa forma controverso. Chegando na Filadélfia em 1791, ele afirma ter visitado Nova York, Boston, Albany, e Niagara; e então viajado para o Golfo do México, retornando através do “Natchez Trace” para Nashville; e finalmente de volta a Filadélfia, tudo num intervalo de cinco meses. Ver Raymond Lebègue, “Le Problème du voyage de Chateaubriand en Amerique,” em Journal des Savants 1 (1965): 456–465.
[5] Jeanne Françoise Julie Adélaïde Récamier (1777–1849), conhecida como Juliette, era uma socialite francesa cujo salão atraía a elite literária e os círculos políticos do início do século XIX. Chateaubriand era um visitante habitual deste salão. Ver “Récamier, Jeanne Françoise Julie Adélaïde,” em Encyclopedia Britannica 22 (1911).
[6] Nos anos de 1990, enquanto preparava o manuscrito para o seu único livro, Registro de uma Vivência, Costa registrou a reprodução deste ensaio de 1929, anotando o seguinte depoimento nas margens desta afirmação: “Equívoco. Errado. Pura ignorância. Voltado apenas para a beleza das obras do s XVII e começo do XVIII, eu ainda não estava tão preparado para perceber o altíssimo teor da sua obra de arquiteto e de escultor.” Ver Lucio Costa, Lúcio Costa: Sôbre arquitetura, ed. Alberto Xavier (1962; rpt., Porto Alegre: Editora UniRitter, 2007).
[7] Gilberto Freyre (1900–1987) cita o ensaio de 1929 de Costa “O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional” no seu prefácio da segunda edição em inglês de Casa-Grande & Senzala (1933–1955), porém ele enfatiza somente as mansões coloniais do Brasil, e nada do significativo trabalho de Aleijadinhos em edifícios religiosos: “O arquiteto Lúcio Costa nos dá a impressão da presença das mansões de Sabará, São João d’El-Rei, Ouro Preto, e Mariana, as antigas Casas-Grandes de Minas: ‘...A gente como que se encontra...e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós, não sei. Proust devia explicar isso direito.’” Ver Gilberto Freyre, The Masters and the Slaves: A Study in the Development of Brazilian Civilization, traduzido por Samuel Putnam (Berkeley: University of California Press, 1986; 2nd English-language ed., rev.), xliii; publicado originalmente como Casa-grande e Senzala (1933).